Com três anos, lembro-me de estar nas bancadas a torcer (em gritos de doçura próprios de uma menina dessa idade) pelo meu pai (que jogava futebol quando nasci).
Há lá imagem mais bonita do que um meio metro de gente, de bochechas proeminentes e laçarote rosa na cabeça, regateando sozinha num dos degraus mais baixos da bancada pelo único herói que conhece?
Lembro-me de um dia ter ficado particularmente "zangada" com uma jogada em particular. O meu pai estava solto e o companheiro de equipa não lhe passou a bola. Fiz um beicinho de amuo, mas não me fiquei e gritei e barafustei para dentro de campo (cheia de personalidade, já naquela altura). Mas estava ali, no meu mundo, e fazia a festa sozinha.
Certamente que a minha mãe estava de olhos postos em mim, atenta e vigilante que nem galinha de olho no seu pinto. Mas nem senti isso. O ambiente era tão sereno, tão familiar… ela não precisava de castrar as minhas ações (que têm sempre uma permanente hiperatividade própria da idade) ou aquela sede de andar solta e livre, para que tanto eu como ela sentíssemos que eu estava segura.
Já com o meu pai fora dos relvados, e ainda miúda, lembro-me de todos os fins-de-semana ir “à bola”. Lá ia eu, de mão dada com o meu herói. Percorríamos os jogos da Primeira e da Segunda Ligas e se fosse preciso ainda dávamos um salto às competições distritais – ex-jogador da bola, fica sempre ligado ao futebol, quanto mais não seja pelas amizades que cria.
Era uma coisa de “homens”, mas onde fui sempre acarinhada e mimada. Ouvi sempre o mesmo tipo de piadas: «Ó Camboa, és tão feio e tens uma boneca tão linda!», «Como aturas este sacana, pequena?» Enfim! Aquela forma tão típica da classe masculina manifestar o seu apreço por um “gajo” que é “porreiro”. Escusado dizer que o jargão futebolístico e os palavrões sempre existiram, mas lembro-me tão, mas tão bem de alguns desses homens se desculparem ou de darem "cachaços" uns aos outros numa tentativa de: «Não vês que está ali uma menina, besta?». E ali ficava eu, naquele meio. Com pessoas que olhavam para mim como se eu fosse a filha de todos eles.
E lá continuava eu, a vibrar com o espetáculo naqueles campos, muitas vezes de terra batida.
E lá continuava eu, a vibrar com o espetáculo naqueles campos, muitas vezes de terra batida.
Porque não importava… não eram precisos estádios megalómanos, condições de luxo ou grandes promessas de máquinas na garagem e ordenados chorudos… bastava talento, paixão, e uma bola a rolar. Porque o futebol é feito de pessoas… não de infraestruturas e pomposidade.
E o futebol era isso mesmo: paixão. Um espetáculo que nos mexia com os nervos e nos arrepiava a pele. Hoje em dia ainda consegue ser isso tudo (ufa!), mas com uma boa dose de negócio e indústria à mistura. E já se sabe o que acontece quando se juntam milhares de cifrões a uma modalidade em ascensão: surgem interesses pessoais, ambições egoístas, sede desmedida de poder que acabam por se sobrepor ao desporto e à sua essência.
Acho incrível que se melhorem as condições dos estádios, que se proporcione aos atletas os meios essenciais para a prática da sua profissão e que o façam também a pensar naqueles que se deslocam até lá para apoiar os seus craques. Mas, mais do que reabilitarmos estruturas, é preciso trabalhar nas pessoas que delas usufruem. Digamos que neste aspeto, o futebol não difere muito das leis da beleza: podemos recorrer à melhor maquilhagem do mundo e às mais incríveis cirurgias plásticas do universo para camuflarmos os nossos defeitos… aquilo que corre nas nossas entranhas mantém-se intacto.
No futebol, é exatamente igual. Os estádios, as infraestruturas, os equipamentos, as condições, a logística … tudo melhora. E, ainda assim, o futebol cada vez se pauta mais pelo que de negativo existe: escândalos, violência, crime. E porquê? Porque muda tudo, menos os valores das pessoas que por ali caminham. E qual vai ser a experiência das crianças de hoje, que ousam “ir à bola”? Não adivinho o futuro, mas garanto-vos que vai estar a anos-luz daquela que a pequena Ana viveu e conheceu nos seus inocentes três anos. E tenho pena. Porque são memórias que adorava deixar e ver imortalizadas nos meus filhos. Mas pelo andar da carruagem, a coisa deve ficar mais ou menos pelos cenários que vimos nos últimos tempos (que, como sabem, são tudo, menos futebol espetáculo).
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